Por Ana Chagas:
Nunca fui chegada a datas comemorativas. Dia dos namorados, dia das mães, dia
dos pais, dia das crianças, lá em casa sempre foram consideradas datas comerciais
destinadas a incentivar o consumismo. Quando me pediram para escrever um texto
para o 8 de março fiquei com tanta preguiça que chutei a bola para uma outra
companheira do núcleo que sequer me respondeu. Fiquei pensando se ela tinha
sentido a mesma preguiça que eu. Fiquei também pensando se não seria mais
importante um homem escrever sobre o dia das mulheres. Porque fora haver um
certo consenso em nos oferecer flores ou chocolates o que homens pensam sobre a
existência desse dia? Fiquei pensando nisso tudo mas aqui estou eu escrevendo
essas linhas.
Quando eu penso no dia 8 de março penso na minha bisavó que lutou pelo direito
de voto das mulheres conquistado em 1932, imediatamente penso também nos
requisitos necessarios para que uma mulher votasse e o quanto isso afastou as
mulheres negras desse direito.
” Para exercer o direito, as mulheres tinham que cumprir com exigências que
bastante restringiram as potenciais eleitoras. As casadas eram obrigadas a pedir
permissão aos maridos. Já as solteiras ou viúvas deveriam comprovar que exerciam
trabalho remunerado. Cabe lembrar que o voto feminino se tornou possível apenas
44 anos depois do fim da escravidão. Isto significa que a maneira como a abolição
da escravidão se deu no Brasil tornou muito difícil a formação de um grupo sólido de
eleitoras negras a partir das principais exigências para o voto: comprovação de
emprego e renda fixa. Outra barreira imposta às mulheres negras à época, era o
fato de que pessoas analfabetas eram impedidas de votar”, pontua Gabrielle Abreu,
historiadora e militante do Movimento Mulheres Negras Decidem.
Quando eu penso no dia 8 de março, penso no direito adquirido de trabalhar fora de
casa, em busca de independência financeira.
“Se levarmos em consideração o que dizia o Código Civil de 1916, as mulheres
casadas não tinham nenhum poder de decisão. Era necessário ter autorização do
marido para trabalhar fora de casa, por exemplo. Foi só em 1962 que surgiu a Lei
4.121/62, o Estatuto da Mulher Casada, abolindo a incapacidade da mulher. Através
desse estatuto foi possível que a mulher trabalhasse fora de casa, além de ter
direito à herança e requerer a guarda dos filhos em caso de separação. Esse ganho
tornou o papel da mulher um pouco mais próximo ao do homem, mas os gêneros só
foram considerados iguais perante a lei com a Constituição de 1988, menos de 30
anos atrás.”
Imediatamente lembro de uma fala da cantora e compositora Bia Ferreira numa
entrevista em que ela relembra que mulheres negras brasileiras sempre
trabalharam.
“Então a gente tá no meio da rua, numa praça publica, falando a respeito do
genocidio do povo preto, falando a respeito do poder da mulher, e de como a mulher
negra tá no chão, assim, embaixo de tudo, ela nao tem privilégio nenhum, de nada,
de nada, de nada. Ninguem perguntou pra ela, se ela queria trabalhar, porque ela
trabalhou a vida inteira desde que trouxeram ela de Africa, que ela tá trabalhando,
se fudendo, sabe. E aí, as pessoas nao perguntaram isso, só falaram assim, “ah
tudo bem”, as pessoas falaram vamos trabalhar, eu quero igualdade e quero que
todas mulheres trabalhem. E a gente, mulher preta, a gente só queria cuidar dos
nossos filhos, cuidar dos nossos pais, a gente só queria, não morrer mais debaixo
do chicote. Primeiramente pela vida das mulheres negras! Porra! “
Quando eu penso no dia 8 de março, penso que no Brasil, um estupro é registrado a
cada 8 minutos; 85% das vítimas são mulheres; em 70% dos casos, a vítima é
criança ou vulnerável; quase 84% dos estupradores são conhecidos das vítimas.
Imediatamente penso que essa violência também tem cor : “Um estudo realizado
pela Rede de Observatórios da Segurança divulgou, na Universidade Federal da
Bahia (Ufba), dados do relatório ‘A cor da violência: Uma análise dos homicídios e
violência sexual na última década’. (…) De acordo com a pesquisa, em 2017, as
mulheres negras sofreram 73% dos casos de violência sexual registrados no Brasil,
enquanto as mulheres brancas foram vítimas em 12,8%. De 2009 a 2017, o número
de mulheres negras vítimas de estupro aumentou quase dez vezes.”
Quando eu penso no dia 8 de março penso que nasci na França em outubro de
1975, e que em janeiro daquele ano graças à coragem da deputada Simone Veil o
direito das mulheres ao aborto foi conquistado. Penso que 47 anos depois no Brasil
seguimos sem o direito de decidir se queremos levar adiante nossas gestações.
Sobre o aborto inseguro como é qualificado o aborto ilegal temos poucos dados,
mas sabemos que ele também é racializado. Segundo o IBGE o indice de aborto
provocado das mulheres pretas é de 3,5%, o dobro do percentual entre as brancas
(1,7%). O perfil mais comum de mulher que recorre ao aborto é o de uma jovem de
até 19 anos, negra e já com filhos, segundo o estudo nacional.
Quando eu penso no dia 8 de março, lembro de Maria Cândida, minha prima que foi
assassinada em Vitória, quando eu ainda era uma criança. Morreu assassinada a
tiros pelo marido, na frente da sua filha, porque ele não aceitava a separação.
Marido esse, que nunca foi preso porque o pai era juiz.
No Brasil uma mulher morre em decorrência de feminicidio a cada 7 horas, mas aí
também não podemos separar gênero e raça. A coordenadora do Nzinga – Coletivo
de Mulheres Negras, Benilda Regina Paiva Brito, reforçou que as questões de raça
impactam a violência de gênero, sendo o racismo ainda um assunto tabu, cuja
legislação é de difícil aplicação. “Todas as estatísticas são piores para nós. A Lei
Maria da Penha não teve impacto sobre nossas vidas. Uma raça aumenta enquanto
a outra diminui. Se você é preto e pardo e tem entre 15 e 29 anos, a sua chance de
ser assassinado no Brasil aumenta 147%. Treze mulheres morrem assassinadas
por dia no País. Estamos na base da pirâmide, somos as mais impactadas pela
desigualdade social”, afirmou.
Quando eu penso no dia 8 de março, penso que um presidente foi eleito por
brasileiros e brasileiras apesar de, entre tantas barbaridades proferidas, ter dito à
deputada Maria do Rosário que ela não merecia ser estuprada por ele.
Penso que um deputado foi à Ucrânia em 2022 para dizer que mulheres ucranianas
são fáceis porque são pobres.
Quando eu penso no dia 8 de março me lembro que a artesã Beatriz Coelho foi
detida há pouco tempo e teve os pés algemados por ter feito topless numa praia
qualquer desse nosso Brasil. Quando penso no dia 8 de março, fico exausta só de
pensar. Mas sigo.
Lula presidente 2022 é o que desejo pra nós, para que em 2023 possamos lutar
pelo direito de abortar. Algumas pautas são imprescindíveis, essa é uma delas.
Ana Chagas é atriz, poeta, roteirista, cineasta e produtora cultural. Cursou artes cênicas em Paris 3 Censier – Sorbonne Nouvelle. Estreou profissionalmente em Paris dirigida por Emmanuel Demarcy-Mota no Théâtre de la Ville, com quem trabalhou por mais de dez anos antes de se mudar para o Rio de Janeiro. É diretora da Casa de Cultura Saravá Bien, situada na Lapa/RJ, diretora do Río Mapping Festival, roteirista e diretora do longa-metragem “O sequestro do embaixador alemão, com previsão de estreia para o segundo semestre de 2022 e membra do núcleo Saravá Cultural.
#CulturaGeraEmprego
Foto em destaque da sufragista Almerinda Farias Gama, uma das primeiras mulheres negras a atuar na política brasileira.