Crônica de uma morte encenada (I)

*Por Henrique Souza:

Após a eleição de Bolsonaro em 2018, passei os meses seguintes em desespero, não só pela tragédia que aquilo representava para a democracia brasileira, mas também pelos riscos para a Agência Nacional do Cinema, onde trabalho, e para toda a política audiovisual responsável por enormes conquistas nas últimas duas décadas. Meu espanto era também com a tranquilidade de alguns colegas diante deste cenário de desastre anunciado.

Mesmo se dizendo progressistas, seguiam com um inabalável otimismo, que um deles sintetizou no seguinte argumento: “Só precisamos nos fazer de mortos para não incomodar e nos manter abaixo do radar, e a Ancine vai passar despercebida durante este governo.”


À época esta expectativa dos colegas me pareceu de uma ingenuidade primária. Primeiro, por dinheiro: me parecia óbvio que quem faz rachadinha e homenageia milicianos não desprezaria a enorme quantidade de recursos geridos pela Ancine através do Fundo Setorial do Audiovisual, que já chegou a ser maior até mesmo que o orçamento do Ministério da Cultura.


Mas o erro principal que eu via naquele raciocínio era o entendimento da cultura como algo secundário, que seria deixado de lado pelo novo governo porque haveria questões mais importantes a tratar. Isso, infelizmente, tende a ser verdade para a maioria dos governos, que costumam ver as políticas culturais como algo acessório, dispensável. Uma exceção historicamente relevante, no entanto, são justamente os governos fascistas, que entendem as políticas culturais como eixo central da manipulação da opinião pública.


Não à toa, uma das principais estratégias dos bolsonaristas, olavistas e do MBL durante a campanha eleitoral de 2018 foi o foco nas chamadas “guerras culturais”, com proliferação de denúncias de “arte degenerada” tentando censurar exposições e manifestações artísticas por todo o país, numa verdadeira “cruzada” contra a liberdade criativa dos artistas que muito se assemelhava ao processo ocorrido na Alemanha nazista, que levou em 1937 à infame Mostra Internacional de Arte
Degenerada, em Munique, reunindo obras de alguns dos maiores artistas modernistas, exibidos como inimigos públicos para a catarse de ódio dos espectadores.


O documentário “Arquitetura da destruição”, de Peter Cohen, demonstra bem como a política cultural foi elemento central da ideologia e regime nazistas. Por um lado, a ideologia nazista estava fundamentada num ideal de modelo estético bastante restrito, que justificava a conquista do mundo para torná-lo mais “belo”, eliminando tudo e todos que fossem classificados como “feios”, desviantes, anormais. A finalidade da arte era a beleza de acordo aos ideais estéticos clássicos greco-romanos, e deveria ter caráter educativo para louvar Deus, pátria e família.


Ao mesmo tempo, o regime nazista usava a política cultural como eixo de sua gigantesca máquina de propaganda. A censura se tornou a regra em todas as linguagens artísticas, livros e quadros eram queimados em praça pública, artistas modernos se tornaram alvo de vigilância e perseguição estatal, e de uma campanha pública de ódio. Mais que censurar a arte moderna, o regime nazista direcionou a política cultural para criar uma “nova arte”, numa linguagem condizente com a pretendida grandeza do Reich, com objetivo de propaganda e coesão social.


Bastante simbólico desta política cultural foi o trabalho da cineasta Leni Riefenstahl (FOTO), até hoje considerado um marco da história do cinema por ter conseguido transformar os desfiles nazistas em grandiosos espetáculos cinematográficos, com planos abertos mostrando um exército que nas telas parecia infinito, organizado geometricamente numa coreografia perfeita, com uma montagem milimetricamente calculada, imagens que até hoje causam impacto e que à época pareciam comprovar a inevitabilidade do triunfo nazista.


Tamanha era a importância atribuída às políticas culturais que delas cuidava diretamente o próprio Ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels, que criou no seu Ministério a Câmara da Cultura do Reich, com filiação obrigatória de todos os artistas e profissionais da cultura alemães. Seu objetivo era não só promover a “arte heroica, nacional e imperativa”, mas também extirpar da cultura alemã qualquer resquício de comunismo e do judaísmo. Goebbels era um dos maiores entusiastas do extermínio total dos judeus, e um dos poucos oficiais de topo do NSDAP (Partido Nazista) a defender publicamente esta posição, que também norteava a política cultural do Reich.

(Continua na próxima edição)


*Henrique Souza é Servidor federal e Presidente da Associação dos Servidores Públicos da Ancine.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s