Por Francis Ivanovich:
O termo “Cidade Partida” se popularizou quando o jornalista Zuenir Ventura publicou livro com o mesmo termo, em 1994. O livro de Zuenir conta como foram os 10 meses que ele viveu em Vigário Geral, que na época tinha sido palco de uma chacina que vitimou 21 pessoas e foi notícia em todo o mundo.
Já absorvemos na corrente sanguínea esse conceito de tal maneira, que não mais nos surpreende, e assusta, infelizmente, vivermos numa cidade que é dividida e comandada por grupos armados. Em um período de 16 anos, as milícias praticamente quintuplicaram seus territórios, atualmente sendo o maior grupo criminoso do Rio de Janeiro.
As áreas sob domínio de grupos paramilitares aumentaram 387,3% entre os anos de 2006 e 2021, revela estudo publicado pelo Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, que também aponta que cerca de 4,4 milhões de pessoas vivem hoje em áreas controladas por grupos criminosos.
Diante de tal quadro, parece menor e incoerente falar em Cultura. Não, não é. O não acesso à Educação e à Cultura faz muita diferença e contribui em muito para esse terrível panorama social que vive o Rio de Janeiro, cidade ainda maravilhosa, e o estado.
Eu e muitos dos meus companheiros e companheiras que atuam e resistem hoje na Cultura, temos nossa origem justamente nessas áreas dominadas pelo crime. Eu venho da Baixada que, nos anos 70, conhecia muito a violência no seu dia-a-dia. Com pouco mais de 10 anos, levei revólver na cara e talvez não tenha sido assassinado por ser branco.
Assim como a Cidade é partida, a Cultura também é. Desde que estreei no teatro em 1983, fui entendendo que havia uma Cultura partida, notadamente demarcada. Uma Cultura dominante praticada na Zona Sul do Rio, e uma Cultura marginal que sobrevivia nas demais regiões da Cidade e do Estado do Rio de Janeiro. Talvez o Samba seja a única manifestação cultural popular que teve forças para romper, por si mesmo, esses muros e penetrar em todas as camadas.
Já os jovens dessas regiões marginalizadas que atuam no teatro, na música, dança, literatura, cinema, sempre vivenciaram uma invisibilidade, enquanto os jovens que atuavam nas áreas nobres do Rio tinham mais acesso e oportunidades. Devemos ao Funk muito dessa transformação, mesmo que ainda não completa. Foi ele que começou a invadir, literalmente, os apartamentos do Leblon.
Infelizmente a Cultura Partida perpetua seu domínio até hoje. Ainda assistimos ser a Zona Sul do Rio o pretenso QG de uma suposta representatividade Cultural em nossa Cidade e Estado. Sempre foi assim, e o mais surpreendente é que a mídia e os partidos políticos continuam a acreditar que quem tem influência na Cultura são esses rincões elitistas, midiáticos, como barões da Cultura. Enganam-se.
Essa gente não representa a Cultura, mas um pedacinho dela. No máximo têm influência em alguns segmentos mais identificados com seu meio; eles não têm toda essa capacidade de atrair votos ou fazer a mudança necessária. Na verdade estão a agir para a perpetuação dos seus privilégios históricos.
Um possível novo Governo Lula precisa de fato ver a Cultura de uma nova forma, novo prisma social. É preciso acabar com essa injusta e antiga elitização da Cultura, como se ela fosse resumida a determinados nomes e projetos incentivados com caros bilhetes de entrada.
A prova de que isso não está funcionando é o atual quadro dantesco que a cidade e o estado estão mergulhados. Uma juventude sem acesso à uma educação de qualidade e à Cultura, nas suas mais diversas expressões, refém da pistola e do fuzil.
Valorizar o artista local e possibilitar que ele se desenvolva conjuntamente com a sua comunidade é fundamental para a elevação espiritual e intelectual do nosso povo.
Chega de Cultura partida e mentiras!
*Francis Ivanovich é produtor cultural, cineasta e jornalista.