Por Francis Ivanovich:
O genial poeta português Fernando Pessoa escreveu um poema chamado Ulisses, diz ele:
ULISSES
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo —
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
Quando conheci este poema com sua frase O MITO É O NADA QUE É TUDO, e isto devo à minha eterna Professora Marina Tosta Paranhos, na juventude, foi um soco no estômago.
O poema trazia à luz muitas das minhas angústias sobre como utilizamos o mito para dar sentido à vida neste mundo. Você pode não perceber, mas sua vida é afetada pelo mito real.
Não vou aqui analisar este complexo poema pessoano, nem tenho competência para isso, no entanto, vale a informação de que o poema em questão abrange também a história portuguesa, sobre a lenda de que o mito Ulisses tenha navegado o Rio Tejo, em Lisboa.
Pessoa é um poeta dificílimo, de aparente simplicidade, e como é curioso ele que tenha se popularizado tanto, também tornando-se um mito.
O que me importa neste poema, é o tema do mito. O poema nos possibilita demonstrar como o mito influencia a nossa realidade, nosso cotidiano. Isso sempre considerei estupendo. Sem o mito estaríamos perdidos, calma, explico.
Eu jamais imaginaria que a palavra mito estivesse tanto na moda. O Brasil assistiu nos últimos três anos, desde 2018, um grupo significativo de brasileiros encherem a boca com a palavra mito. Não tenho dúvidas de que esse grupo, em sua quase totalidade, desconheça o poema Ulisses de Pessoa, e muito menos sua frase: O MITO É O NADA QUE É TUDO.
O que Pessoa quer dizer com esta frase?
Que a lenda que dá vida à realidade. O mito é uma lenda, é algo irreal, e somos nós que conferimos ao mito um sentido de realidade, nossa realidade, materialidade. Isso é algo bem sofisticado que cada um de nós faz, independente do nível social ou cultural. Essa necessidade do mito é inerente ao ser humano.
O importante é o fato de que o mito é uma fantasia, como se a realidade nascesse da lenda. Muito louco, isso! Isso é muito profundo. Todos nós praticamos isso, ou seja, indo de encontro ao mito para dar sentido à nossa existência. Há uma palavra que pode definir bem esse processo: FÉ. Ter fé em algo superior a nós, ter fé em algo que pode nos salvar, nos curar, nos dar uma vida plena, tem muito a ver com a questão do mito.

(Já ouço meu amigo Dema, secretário de organização do PT Carioca, dizendo: Francis você escreveu um tratado, rs)
Senti necessidade de provocar essa reflexão em nossas companheiras e companheiros. Não podemos ser ingênuos diante das palavras. Enfrentamos hoje no Brasil questões muito sérias que tocam a fundo nossas vidas, pessoal e coletiva. Enfrentamos tempos de mentiras, fabricações de mitos de araque, rasos, que parecem ser TUDO, mas na verdade são NADA: O MITO É O TUDO QUE NÃO É NADA.
Os bons poetas têm uma capacidade incrível de tocar a verdade com sua poesia. Pessoa foi um desses poetas.
Devemos ter clareza sobre o que é um mito de verdade, o mito que atravessa os tempos, que afetam a nossa realidade.
Precisamos de maturidade política, discernimento, debate, diálogo, é o que devemos praticar para a construção de uma Nação soberana e livre de falsos mitos.
O verdadeiro mito, o que é importante de fato para a nossa realidade, que nos inspira, como Ulisses, do poema de Pessoa – baseado na lenda da mitologia grega que conta a Odisseia de um herói exilado, metáfora da luta, da batalha, da esperança, persistência de se atingir um objetivo, que no caso dele, era tão somente voltar para casa – nos inspira, ensina, dá bom exemplo. Esse mito torna-se parte de cada um de nós, e das futuras gerações.
Já os mitos de barro, cuja língua é a mentira, a roupa é o disfarce, o gesto é o golpe, e o caráter é o veneno, não ficarão na história, serão tragados pelo ralo, são apenas tristes personagens que atormentaram nossos dias com lágrimas e sangue. Esses são de fato NADA.
Obrigado, Pessoa!
O Mito é o nada que é tudo!
*Francis Ivanovich é jornalista, autor, cineasta, produtor cultural e integrante do Núcleo Saravá Cultural.