
Por Lílian Oliveira:
Para ajudar nesta conversação sobre estética e política, convido você a revisitar o curta-metragem de Jean-Luc Godard, Je Vous Salue, Saravejo (1993), que esteve presente na 29ª Bienal de Veneza. A obra está permeada por livres referências do cineasta, e aborda o cerco a Saravejo, na Guerra da Bósnia, apontando para a cultura europeia nacionalista, egocêntrica, em uma narrativa que inverte as posições do contraplano e do plano. Em instância última, propõe a reflexão sobre a dicotomia entre cultura e arte, na qual o lugar da cultura é o da regra e o da arte, a exceção.
Assim como Godard revelou nessa obra-prima, hoje essas questões novamente emergem, por meio dos covardes ataques da Rússia a Kiev. Elas convocam a um enfrentamento direto à regra: à lógica cartesiana e autorreferente que orienta a Europa Cultural e ecoa aqui nos trópicos em chamas: o incêndio da Cinemateca, do Museu Nacional — ah, Fahrenheit(ear) 451 é uma delícia! Essa é a lógica que insiste em querer, a um custo altíssimo para a humanidade, a morte da exceção, do plural, dos modos de existir, de viver.
Mesmo assim, sendo o lugar da exceção, a arte deve ser amparada por políticas públicas, principalmente em momentos como o que vivemos, em que o mundo se fecha e está mais duro, engessado.
Afinal, somos uma sociedade plural que, apesar desse endurecimento e desse cenário obscuro, apresenta como contraponto um paradoxo orgástico: parte da indústria cultural, por meio, também, das redes sociais e dos festivais, questiona o fascismo e a geopolítica mundial, por muitas vezes imperialista, e nos provoca à dialética da arte e ao seu contrário (a arte está, ao mesmo tempo, dentro e fora da cultura). Essa dicotomia deve ser enfrentada dentro do contexto histórico e levada até as últimas consequências, sem medo, sem recuo.
Continuo com o “desvio” do olhar para o nosso quintal, mais precisamente para o terceiro ano pandêmico, quando vimos, de forma emergencial, a aprovação de leis que amparam o direito fundamental à cultura. Uma conquista importantíssima para os trabalhadores e fazedores da cultura. Mas o que irá amparar a exceção? O lugar da exceção é outro, é o lugar do que não é dito. E o lugar desse outro, a arte, é o de forçar os limites da cultura, questionar o status quo. Como disse Godard: a exceção não é dita. Ela é escrita, pintada, filmada, tocada. Ela é vivida!
E acrescento: a exceção é inquieta, ela incomoda, transborda… E que bom que é assim!
Portanto, evoquemos mais uma vez — mais uma vez e tanto quanto for necessário! — Godard e sua máxima: “Cultura é regra, arte é exceção”, esperando que em tempo algum seja sufocada a pergunta que merece uma polifonia de respostas: Quem/o que irá amparar a arte?
*Lílian Oliveira é gestora cultural, parecerista da FUNARTE, IBRAM, IPHAN e FBN, idealizadora do Contaminações – Fórum das Artes Visuais, e fundadora da Diálogo — gestão cultural e responsabilidade socioambiental.
Foto de Capa: Despedida de pai e filha na estação central de Kiev – março 2022
(Photo by Sergei CHUZAVKOV/ AFP – Agence France-Presse)