“Assim, hoje e desde sempre, arte é vida, e esses são direitos indissociáveis. Portanto, reforça-se a natureza da arte como direito humano fundamental”.

Por Lílian Oliveira:
Hoje, convido você para uma reflexão não binária, apesar da sugestão do título, sobre a importância do meio ambiente cultural como essência e estrutura para a construção da identidade de um povo, e, ainda, sobre a importância da criação de um documento como compromisso com a nação e norte para a elaboração de políticas públicas de Estado para garantir o direito fundamental à cultura.
Inicialmente, ressalto que, em nossa história, tão nova, sempre fomos abortados e impedidos de realizar essa construção identitária, que, apesar de (…), resiste! Lembremos de toda força do Manifesto Antropofágico, da Semana de Arte de 1922, da Tropicália e de outros tantos movimentos com tamanho esforço.
Vejamos! O meio ambiente cultural (para a arte), no espaço urbano, nos traz uma dicotomia do tempo-espaço. Explico: embora seja algo inapreensível, esse tempo-espaço, se mantém, em tese, “estático” nos ambientes públicos (museus) e privados (galerias). Isso porque estes são, também, espaços de memória e de referência para a construção de identidades.
Quanto ao âmbito do meio ambiente cultural urbano (público), tempo-espaço é algo que nos escapa dado o caráter efêmero e transitório das manifestações de arte na urbs. De certa forma, essas manifestações ficam no imaginário do passante como memória para construção da identidade e para a construção do sentimento de pertencimento.
Nesse sentido, por meio da arte podemos entender o espaço urbano (tradicional: museus e os novos espaços urbanos: as mídias sociais) como meio ambiente cultural público e identificar sua importância simbólica. Assim, falar em identidade de sujeitos é falar em direito fundamental à cultura. Este está previsto em várias passagens na nossa Carta Magna de 1988, especialmente, no art. 5º, parágrafos 1º e 2º, e em tratados internacionais, dos quais o Brasil é parte, e versam sobre direitos humanos, inclusive sobre o direito ao meio ambiente cultural.
Dessa forma, é urgente compreender que o meio ambiente cultural (para a arte) é um direito fundamental que deve ser garantido e preservado para uma nação, dado seu valor simbólico e por ser essência e estrutura para a construção de identidade de um povo.
Ademais, o ambiente cultural para a arte é local de polifonia da arte, arte e vida, seja ele privado ou, principalmente, público (em espaços institucionalizados: como museus, não institucionalizados: como a rua e os espaços públicos ampliados: as mídias sociais).
Nunca é demais lembrar Merleau-Ponty*, e seu imperativo filosófico: Devemos reaprender a ver o mundo, à pré-reflexão: voltar às origens. A percepção é o nosso primeiro contato com as coisas, com o mundo. Ela passa pela sensibilidade antes do conhecimento elaborado.
Os nossos sentidos são responsáveis pelo nosso conhecimento (por isso Merleau-Ponty escreve: O olho e o espírito). Nosso corpo é fenomenológico, nosso corpo é consciente de algo também. Para Merleau-Ponty, o corpo apresenta um sistema de inteligência (os cinco sentidos) que se articulam para dar sentido ao mundo.
O nosso corpo é inteligente e é isso que Merleau Ponty nos ensina. Assim, a vida é pré-refletida e pré-intelectualizada. Ou seja, a nossa vida não é só intelecto. O que nos traz diretamente (nos é apresentado de primeira) talvez nos aproxime da verdade, do que aquilo que apenas elaboramos e refletimos.
Assim, é preciso deixar claro: não se deve confundir pré-compreensão com visão de mundo, preconceitos ou qualquer outro termo que leve ao reducionismo ou pragmatismo do que se pretende aqui.
No mesmo sentido, evoco o poeta e jurista Carlos Ayres Britto e sua tese de que: “o sentimento abre os poros do pensamento”. Assim, hoje e desde sempre, arte é vida, e esses são direitos indissociáveis. Portanto, reforça-se a natureza da arte como direito humano fundamental.
Como a vida acontece no agora, no presente, e produz efeitos que atravessam gerações, o ambiente cultural para a arte deve ser preservado por meio de políticas públicas de Estado e de legislações que concedam subsídios e mecanismos de proteção para além dos já conhecidos incentivos fiscais e ações emergenciais de governo (portanto transitórias). Isso visa o amparo a este direito: o meio ambiente cultural (para a arte), como já acontece em outros ramos da economia.

Não se defende aqui importações de modelos jurídicos europeus, trata-se de um convite ao exercício de oxigenação do pensamento e à projeção de horizonte possíveis. Assim é importante lembrar o exemplo de outros países, como a França, para a qual, durante o ápice da crise de 2008 e, recentemente, em 2022, em função da crise sanitária mundial, com variação negativa do PIB, o Estado garantiu e reafirmou seu compromisso com a cultura e o povo francês, com o aumento de investimentos diretos para a cultura. Isso foi feito por meio do documento “Effort financier de L’État dans le domaine culture”.
Ou seja, em um momento de forte crise, o que primeiro se amparou foi o direito à cultura e a um meio ambiente cultural para a arte com crescentes e significativos aportes de valores. Tudo isso sem afastar o diálogo com o social, o ambiental e a inclusão que permeiam o meio ambiente cultural e proporcionam um efeito positivo e decisivo para a economia.
Por tudo isso, é fundamental que as políticas públicas de Estado, para a cultura, não sejam pautadas, exclusivamente, em seu uso instrumental para o desenvolvimento econômico, dada toda a dimensão que a cultura, e em especial, a arte, são para um povo. Podemos afirmar que, o meio ambiente cultural para a arte, por também ter interface com a memória, é essência e estrutura para a construção da identidade de uma sociedade.
Portanto, torna-se urgente ampliar o sentido hermenêutico sobre o Princípio da Função Social, no nosso ordenamento jurídico, e entendê-lo como um organismo sistematizado. Dessa forma, será possível amparar e garantir ao povo brasileiro, de forma mais equânime possível e em harmonia com o Estado Democrático de Direito, o direito ao Meio Ambiente Cultural (para a Arte).
Apenas, quando esse direito estiver protegido pelo instituto do reconhecimento (ou seja, pela lógica temporal do desde sempre), “a sociedade poderá transmutar em qualidade e dar um salto quântico”, parafraseando o sensível, poeta, jurista e ex. Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, em reflexão sobre a importância da proteção de outro direito fundamental por extensão: os direitos dos povos originários, os índios, e a proteção de suas terras. De maneira contrária, estaremos fadados a uma proteção deficitária do direito fundamental à cultura.
Fragmento do artigo “O Espaço Urbano como Ambiente Cultural: as mídias sociais como ampliação do conceito de espaço público” (2019), de Lílian Oliveira e Rogéria Maciel Meira, publicado em Da Filosofia do Ambiente Ao Direito Ambiental: fundamentos para uma justiça ambiental. Agora, com livres adaptações, o artigo metamorfoseou-se nesse ensaio.
*MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção (C. Moura, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. 1994. (Texto original publicado em 1945).
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível Tradução de Artur Gianotti e Armando Mora. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. (Texto original publicado em 1964).
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
*Lílian Oliveira é gestora cultural, parecerista da FUNARTE, IBRAM, IPHAN e FBN, idealizadora do Contaminações – Fórum das Artes Visuais, e fundadora da Diálogo — gestão cultural e responsabilidade socioambiental.